Pular para o conteúdo principal

Copo d'água em tempestade.

O clima estava tenso no consultório, mas nem a terapeuta, nem seus fregueses o notariam. Talvez por hábito, talvez por ensejo, afinal, não se vai a psicólogos para compartilhar a primavera. Roberta e Roberto Praça procuravam mais uma vez a brandura na tempestade matrimonial. Pelo menos diziam procurar. E a outra moça da sala lá estava fazendo sua cara de terapeuta. Aquela cara de quem entende tudo e nada ao mesmo tempo.

— Acredita, Vanusa, que ele sequer me dá bom dia quando acordo?

— Minha mãe dizia que não se precisa dar bom dia àquele com quem se dorme.

— Viu? Por que não se casou com sua mãe então?

— Tá vendo?

— Vendo o quê? Que sua mãe não soube lhe educar?

— E vai ser você que vai?

— Viu? Você precisa ler mais!

— Não comece. Essa água já está na fossa, virou chorume.

— Quanta amargura! Aposto que a sua fotografia da água teria chifres. — Virou para a psicóloga e continuou — Vanusa, ele está falando do livro que comecei a ler. De um cientista que afirma que a água é sensitiva e por meio dela se pode criar um padrão e captar todas as energias ao seu redor, inclusive do cosmo... — tornou ao marido e proferiu com convicção — É a materialização do cosmo!

— Não acredito nisso.

— Não estou pedindo para você acreditar, só estou tentando estabelecer um diálogo diferente do “você pode pegar as crianças no colégio hoje”.

— Não. Eu não acredito que você esteja falando isso até para nossa terapeuta. Pensei que você fosse sentir vergonha.

— É uma coisa séria, Roberto! Se você não dá vazão, o problema é seu: já somos bem grandinhos para sabermos lidar com nossas diferenças.

— Um a...

— Um a quanto? Não estamos competindo! Jogamos do mesmo lado! Pelo menos acho que deveríamos.

— Um a é a nossa diferença: Roberto, Roberta.

— Por que você faz isso? Por que fica mudando de assunto ou me ironizando o tempo todo? A você apraz me subjugar?

— Você é louca! Vê coisa onde não tem! Por que você não faz como o japa do seu livro e escreve sobre como é fácil delirar?

— Eu não sou louca!

— Então o que é?

— Para o seu governo, ele estudou, fotografou, catalogou, trabalhou por 15 anos para lançar o livro! Você acha que ele não merece crédito?

— E então!? Você passou 46 anos vendo coisa onde não tem! Será bestseller também, tenho certeza.

— Pelo visto não dá para manter uma relação com você...

— Bom dia.

— Bom dia o quê?

— Estou lhe desejando bom dia. Satisfeita?

— Bom dia nada! Agora é tarde.

— Boa tarde.

— Não, Roberto! Você não entende nada.

Comentários

  1. A comicidade do cotidiano sempre pode ser acentuada por um(a) psicólogo(a).

    o/

    ResponderExcluir
  2. haha cara, beleza de diálogo, adoro diálogos. diálogo é massa de escrever (massa? que coisa de tiozão da minha parte). anyway. to te seguindo também cara, gostei daqui; a gente se tromba.

    ResponderExcluir
  3. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
    ri muito

    ResponderExcluir
  4. Um dos meus cenários de exploração favoritos é o consultório psicológico. Mas o que eu achei mais interessante, e que acredito que foi proposital, foi o fato da psicóloga não se manifestar ao longo da crônica. Tira-se uma boa conclusão disso.

    ResponderExcluir
  5. André sempre incrível na percepção!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Liquidifica dor

Misturo tudo dentro. Ponho coisas doces, amargas e o saudoso sal. Todas as cores lindas do arco-íris. Às vezes queria ter um liquidificador na minha casa nova, mas me contentaria com uma luz difusa – por enquanto. Em quanto tempo tudo se decanta? Ou tanto faz já que tudo encanta? Finjo não importar. Ajusto a velocidade e me assusto com ela. Tudo vibra. Ponho meu bloco de manteiga na rua e bato mais um pouco essa história louca. Infelizmente o medo aparece. Medo de tudo. De tudo! E ele, o medo, desonera minha arte.  Aparta-me do nexo, apela-me ao sexo, aperta-me o plexo! É tanto tempo, é tanta coisa, é tanto tudo que me afugenta o nada. Um zunido me azucrina. Mas o nada é preciso! É precioso! Paro e reparo os líquidos ao redor do olho do corpo do oceano. Prefiro a calmaria do fundo. Quase me afogo no mundo. Lembro-me de que nada disso é real. Tudo não passa de um pesadelo. Pesares... e deleites fazem parte da receita. A pergunta que fica, na verdade, é se só nos resta aceitar que é mel

Visita surpresa

Eu não sabia aonde você tinha ido parar. Fazia tanto tempo que você não aparecia! Por um instante eu nem acreditei que fosse possível: você aqui de novo!? Eu não sabia se você estava morando no Ceará ou somente nas minhas expectativas.  Está chovendo. Você chega sem bater na porta, traz as roupas do varal e atravessa meu corredor. Invade todos os cômodos como inundação. Coloca uma música, equaliza o som e me faz dançar! Só sei dançar com você também. Pude sentir o seu perfume pela sala. Em meia-hora você mudou minha vida. Você acredita que vivo até hoje com a sua herança? Fiz seu café. Tapioca com leite de coco, se me lembro bem. Olhei seus olhos e eles revelavam uma tranquilidade cândida. Era como aquelas aparições angelicais que o povo de antigamente dizia ter. Suas feições eram serenas, um quase sorriso meio safado, meio transigente. Era lindo esse sorriso. Você já vai? Tudo bem. Obrigado pela visita. Eu estava mesmo morrendo de saudade! Volte sempre! Volte mais! Apareça, amor-própr

Modelo

Pessoas procuram modelos para se apegar. Não há nenhuma novidade nisso. Seguiria eu também o meu próprio modelo? Certa vez ouvi um sábio dizer que os loucos abrem caminhos que mais tarde serão percorridos pelos sábios. Mal sabia ele que mesmo se achando louco, ele, na verdade, já era um sábio por percorrer caminhos já previamente sabidos, trilhados. Seguiria ele também seu próprio modelo? Até onde é a autonomia daquele que diz que não segue modelos? Seria possível ainda haver novos caminhos a se descobrir? É por esquecer do óbvio que o trágico acontece. É por errar o caminho que uma estrada se tece. Talvez seja ímpar viver em par. Talvez casar não seja o caso. Talvez transar não seja um caso. Talvez uma carreira de sucesso não faça sentido nas ruas de Olinda. Talvez em São Paulo, faça. Talvez uma viagem pra Índia is not your thing . Talvez o anonimato lhe seja abominável. Morar no mato, ou na cidade, ou embaixo da ponte,  ou embaixo d'água, ou em outro planeta ou em outros... model