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Mostrando postagens de 2014

Asssíduo.

Eu queria ter menos segredos pra contar, menos receios guardados, menos interesses contidos. Eu queria não ter medo de voar, disse a cobra. Eu lembro que quando era pequeno tinha um sonho rotineiro de voar. E cair. Sempre o mesmo sonho: voar e no meio do voo, perder minhas forças, meus super-poderes e despencar em queda livre. Isso me apavorava! Fazia-me perder a paz, tremelicando sobre o meu travesseiro suado a chorar até que o cansaço opioide das lágrimas me vencesse. Ficava a pensar na decepção, na vergonha e na impotência que é ser incapaz de voar no meu próprio sonho. Doce é a infância onde nossos principais medos são os sonhos. Às vezes quando eu me admiro por algo, sinto empatia por essa admiração. E eu não me orgulho disso, nem tenho ojeriza. Confesso que a única coisa que sinto é medo. Um medo social, um medo velado, que é o medo de explodir, de evitar o inevitável e meus segredos, meus dramas, minhas palavras, meus nãos, meus sins viessem todos à tona de uma vez. Meu eu

Eidético.

Há coisas que não adianta contar, sentir é fundamental. É como uma agonia que uns sentem ao pegar em Bombril, ou que outros têm ao arranhar de um quadro, ou lixas de unha... Não descreve-se uma agonia, senti-la é fundamental. Paixões também são assim. Não dá para simplesmente descrever o porquê de se estar apaixonado. Ora! Você acha que seria fácil não se apaixonar por alguém pra quem seu coração faz tuntum ? Podem dizer, “Ah! Mas é lógico que dá para descrever: você acabou de descrever, afinal”. E daí eu pergunto: com que onipotência você pode garantir que estou descrevendo aquilo que senti? Com que prerrogativas, você pode me dizer que sou movido pelas circunstâncias? Quem, dentre tantos semi-deuses, pode medir aquilo que tanto fere ou apazígua no meu peito? Quem define se apazígua ou fere, se nem eu sei discernir!? Sinto muito, mas não importa como a gente tente explicar o inexplicável, é humanamente impossível compreender algo sobre-humano. Por outro lado, parece de uma obvie

Chá verde.

– Eu queria me matar. – Ora, diga-me uma novidade. – Não paro de pensar nisso. – E qual o problema em pensar nisso? – O problema é que eu amo muitas coisas que deixaria aqui. Muitos sofreriam desolados, muitos desejariam as suas próprias mortes também... – Não se incomode com isso. A gente só sofre pelo que existe e o tempo que lhe fez ser algo, também há de lhe fazer ser nada – uma boa memória... no máximo. Tudo há de passar, inclusive a dor deles... – ... – Inclusive a sua dor passará! Portanto, se o motivo é essa possível dor que você deixaria, sinto informar, mas isso que cê sente é besteira: um dia você está triste, noutro você está feliz, no outro você estará triste, no seguinte, feliz... é assim para todo mundo. – Sim, eu sei. É exatamente isso que não me dá vontade de continuar vivo. É como se eu precisasse me sentir mal pelo mesmo motivo de precisar me sentir bem, ou seja, viver. – Viver é uma contagem regressiva para a morte. Talvez essa competitividade que assola

Rolezinho.

Um medo bateu. A natureza me alerta do que vem por aí. Um vento ateu s ecou meu suor frio e afins, arruinando assim o que havia das promessas em mim.  Não sinto o chão, porque não caminho nele – apenas piso . O chão e eu estamos em sintonia – queremos marcar. Pisando, impulsionando, transitando, trafegando, granjeando, fluindo e gozando. Era só um vento que me azucrinava. Me recupero. Observo a consciência. Verifico se está tudo bem. Não há muito o que olhar, a rua está deserta, o caminho é conhecido e o medo também. Às vezes eu penso se é só ele, o medo, que me faz sentir assim. Morrer, fugir, largar, deixar, correr e gozar. Caminho em duas vias. Faço promessas para jamais vê-las cumpridas. Crio tarefas para nunca serem atingidas. Mas aí, coloco tudo no asfalto outra vez. E me sinto fajuto, forçado, falso, ferido, feroz. Felino. Passo por dois que me olham, me analisam, me alisam com o olhar. Invadido. Um foge. Medo ou sabedoria? Como ele saberia o que eu iria fazer? Seri

Meretíssima,

Vim hoje aqui tentar interceder pelo meu cliente em prova de sua inocência. Eu sei que este já é o último apelo que eu posso fazer e quase tudo alega para que meu cliente seja realmente condenado. Sei que todas as evidências apontam para a sua culpabilidade. Sei que ele cometeu o delito e que provavelmente, ele poderá apodrecer na cadeia. Eu vim de casa determinado a desistir de tudo – de repetir o discurso de ontem, com outras palavras só para passar o tempo da defesa. Contudo, nesses últimos instantes, um argumento desesperado, mas nem por isso insignificante me veio à mente. E ele se refere à muito distante, porém concreta, relação que a Senhora tem com meu cliente e comigo. Peço, de antemão, que escute a toda a minha sequência de pensamentos sem interrupções, para que então depois eu possa responder a quaisquer eventuais questionamentos da acusação. Ei-la: Conforme foi provado, pela gravação, meu cliente cometeu sim esse crime: está tudo lá. Entretanto, dentre todas as pro

Ingrato.

Não importa o que houver, estarei sempre errado. Se eu sinto, estou errado. Se abafo o sentimento, também estou. Se me calo, errado. Se falo, erro novamente. Como pode alguém sentir, implodir, falar ou calar um absurdo desses? Entendo que todos erram, mas não é o caso: eu sou COMPOSTO de absurdos – diferente dos outros que no máximo, depois do que Fernando Pessoa disse em seu poema em linha reta, escorregam quando o maldito piso está molhado com a maldita água. Mas... não importa! Tudo está resolvido: o que acontecer é culpa só minha e de mais ninguém! Um avião que caiu, a culpa é minha! Ora! Quem mais, além de mim, pode adivinhar que aquele voo iria cair? Quem mais, além de mim, poderia prever que aquela viagem não fosse finalizada? É óbvio, é evidente que é tudo culpa minha! Quem dentre esses que me leem de tamanha coerência poderia ser culpado por se bancar de culpado? Nenhum, claro. Somente eu posso ser culpado por ser culpado. Eu! Quem é que não deve ser achincalhado, aped

Velha e louca.

Mais cedo ou mais tarde você tardará por escolher um bom caminho, depois de ter escolhido no passado um mau – eu sei disso. Todas as questões, todos os embates, todas as bifurcações que passarão pelo seu caminho levam a outras questões, embates e bifurcações.   E você só saberá da estrada quando a tiver concluído. Não há outra, porque afinal, da vida só sabe quem viveu. Só há um meio de você descobrir o que tem além da morte. Só há uma escolha feita nisso tudo: viver... ou morrer. E não há certo ou errado para qualquer uma dessas escolhas. Ou se está vivo ou se está morto. E eu... como não estou morto, vivo. Opto por não ter medo do ridículo. Porque acho que ridículo mesmo é se aprisionar, é acusar, é reprimir aquilo que se é – e apenas é. O verbo ser nada mais é que um Ser – ele não precisa se explicar. Ele pode simplesmente ser (o que ele quiser). Ridículo é isso: é negar a sua condição humana como Ser Humano. Afinal, só porque vejo isso é motivo para eu ser o único culpado

Sim, você, nós dois...

E a tinta se estagnou ali. Borrada, esparramada sobre a tenaz e normativa claridão de uma folha vazia. Aquela tinta de espera e ao mesmo tempo desistência. Há mesmo tanto assim para aprender? Há mesmo tão pouco a se prender? No pulsar daquela tinta um oceano desembocou, trazendo consigo águas remotas de mares já antes navegados. O papel era transpassado pela tinta, lambuzado e impregnado pela extensão de um inofensivo, mas ainda catastrófico ponto. Aquela marca não era apenas um simples quadro abstratamente plurissignificante aos autores, ela era o inevitável. Era sangue a tinta. Era um sangue coagulado, explícito, transfundido, doído, difícil. Era sangue que corria da ponta da caneta ultrapassando o papel e manchando as outras folhas do que outrora fora escrito. E o pobre escritor – coitado – quando se vê ilhado de tinta, ao longe divisa uma luz no reto horizonte daquela obscura branquidão. E a luz lhe dizia: siga-me. Quedando-se assim à entrega. A admissão que já não havia ma