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Dá um tempo! (parte 1)

— 3,7! Este é o resultado com que você espera ser aprovado? — imprecou para si mesmo com o velho e inútil tom de automoralismo. — Não vou mais sair durante a semana — continuou blasfemando.

José teve uma semana praticamente inteira para estudar para o exame de Cálculo III na faculdade, mas como era de costume resolveu protelar o estudo mais um pouquinho e despretensiosamente sair com os amigos para desestressar, ou dar uma cochiladinha para descansar, ou uns amassos em Jacqueline porque ninguém é de ferro. Sem contar com Jéssica para variar o cardápio e com Jennifer para não mudar de letra. “Triple Jay” se gabava dizendo aos amigos em outra saída durante a semana. O maioral. E o exame? “De próstata?”

Como todo maioral que se preze, suas notas eram um lixo. O reflexo da satisfação da sua consciência estava ali cuspido em dois dígitos. Três vírgula sete. É melhor por extenso, pelo menos não soa tão miúdo.

Devolveu a folha de papel higiênico usado ao professor e foi conversar com seu amigo sobre a prova. E sobre Mariana, que tirara a maior nota da sala. E sobre as coxas dela. E sobre como deve ser caro namorá-la.

— Vamos apostar na Mega-sena! Acumulou. — disse o amigo do maioral, mote de uma risadinha.

— Ainda dá tempo? — indagou inacreditavelmente dois minutos depois da sua própria auto-lição de moral de que não sairia durante a semana.

— Tem tempo sim! A agência do shopping fecha às 18h... — e como um gato lambendo sua penugem, ronronou — Mas aí teríamos que matar aula de Hidráulica II.

— Pode crer! — pausa dramática. — Ah... — tramou um contra-argumento para sua consciência e prosseguiu dizendo em voz firme para causar mais efeito (e instigar ou dar cola do pretexto ao amigo mímico) — mas eu não consigo prestar atenção na aula estando com fome. Vamos passar lá! A gente faz a aposta, come alguma coisa e volta para o resto da aula.

Sim, lá foram os dois intrujões de si mesmos cometer o mesmo crime da semana passada. Ainda não sabem eles que a pior falta de respeito é aquela feita a si próprio. Mas eles são os imorais! Quer dizer, os maiorais!

Aposta feita, foram lanchar. Sanduíches, batatas fritas, copos de refrigerante, canudos, guardanapos, saches de ketchup e notas fiscais sobre a bandeja. Os maiorais adoram comida pelo número: “É mais cômodo e mais barato.” Ou seria uma escusa por não saber sequer escolher um prato ou/num restaurante do shopping?

Foi o 3,7 quem iniciou a conversa balofês:

— Você Junta? — falou com a boca cheia do reprocessado hambúrguer.

— O quê? Nota fiscal?

— Sim.

— Não. Mas minha empregada junta. Ela troca por ingresso para ver jogos no estádio de graça.

— Tô ligado. Eu perdi minha virgindade com uma empregada da minha avó.

— Cê tinha quantos anos?

— Uns 14, 15. E você?

— Foi com minha primeira namorada — parou para encher a boca de pão e tornar a falar em balofês. — Eu tinha 17.

— Dá pra acreditar que Mariana tem 18 anos?

E ficaram nesse profundo diálogo por mais 28 minutos até que resolveram voltar, como haviam acordado antes, para casa.

(continua...)

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