Pular para o conteúdo principal

Todo garçom é psicólogo.

6 da manhã e o café automaticamente amargo estava na mesa. O cuscuz, os ovos, salsicha, pães e manteiga. 6h30m e ninguém, salvo seus filhos, foi comer. Seu marido correu da cama pro chuveiro, do chuveiro pra roupa e nem sequer abocanhou-lhe um pão ou bochecha. Estava atrasado. Seus filhos e emprego dependiam da sua corrida. Se não tivessem inventado de passar a noite em claro, talvez estivessem todos à mesa, como ela esperava, tendo prazeres estomacais.

Passiva, a esposa assistia ao seu portão parindo toda sua família. Alguém lhe cumprimentara. Lambera-lhe, na verdade. Garçom. Odiou-se por isso. O único contato bucal foi a língua de um cachorro que, por ironia, tinha o nome de um subalterno.

— Garçom! Muxoxava uma vizinha. Oi, Teresinha.

— Oi, como está?

— Tudo bem, graças a Deus! E você?

— Tudo bem, graças a Deus!

— Pois tá. Como estão todos?

— Tudo bem, graças a Deus.

Responder-lhe-ia a mesma frase se a mulher continuasse com o interrogatório mote do falatório matinal. Mesmo que Deus não tivesse nada a ver com isso.

— Mulher, que horas são?

— Tudo bem, graças a Deus.

— O quê?

— O que o quê?

— Que horas?

— Ah, tinha escutado outra coisa. São 7h10m. Mentiu, eram 10 para as 7h. Vixe, tenho até que ir, deixei os panos de molho na água Marilena. Mais um embuste.

— É! Pois então tá. Tchau.

— Tchau.

Tchau, graças a Deus, pronunciou internamente.

— Garçom! chamava a fofoqueira no portão. Como ele tá grande! Já tá com quantos meses?

— 3, 4. Vou indo lá. Tchau, Margareth.

— Tchau. Bom dia!

Não conseguiu lhe proferir um bom dia. Parou atrás da porta esperando a hora em que a vizinha fosse embora. Ela iria dizer o que hoje? Que estou antipática por não lhe retribuir um bom dia? Agora era tarde. Ela ainda está lá fora sendo muito lambida por Garçom. Já sei! pensou. Foi até a despensa e chacoalhou o pote plástico contendo ração. Audição de cachorro é fogo! Em instantes lá estava Garçom na porta da cozinha esperando ser, ironicamente, servido.

— Tá com fome, é? Tá com fome, é? falou com aquela vozinha imbecil.

Colocou mais que o habitual de ração para o cão. Assim como fizera para o marido no café da manhã.

— Ele tem outra!

Comentários

  1. Olhando por esse ponto de vista... Todo cachorro deveria se chamar Garçom!

    o/

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Tá.

Seu corpo tem a chave dos meus desejos. Seu beijo: língua na minha libido. Peito cheio de aspirações: que também me pira e inspira. Seu jeito, sua voz, seus segredos, seus sussurros, suas taras: tudo. Sem medos ou grilos de mim. Silêncio corrompido pelo seu gemido. Tudo agora tem sentidos: vai e vem. Sua carne boa, sem nervos, no ponto, suculenta. Obrigado, mas sem brigar comigo. Leve levo a sua cintura – que me aprisiona como um bambolê. Seu ciúme: minha alforria. Você talvez não saiba, mas eu sei onde você sente. Afinal, como você vai embora, algo fica pra sempre pra trás. Aliás, você não vai mais embora. Você virou minha pintura, quadro vivo na minha memória. Queria saber desenhar... mas pra quê? Se eu posso escrever sem pontuações as mais diversas versões de como você tá suas FR /sɥa/ verb second-person singular past historic of suer suer -uːə(ɹ) UK US noun Someone who sues; a suitor. suer FR /sɥe/ verb to sweat ...

Na cigarreira.

O vício sempre parece uma boa opção em algum momento. A gente nunca consegue ser invicto contra ele. Parece que ele, o vício, é a única solução que nos aceita e nos é impossível renegá-lo para sempre. A vontade contumaz fica lá, urdindo pela sua recaída, até que ela vence dessa vez (mais uma vez). Resiliência silenciada na calada da noite das respostas que tive que inventar. Aquele silêncio do estalar da pólvora pra retomar o fôlego. Sempre recaímos. Em uma hora ou outra inevitavelmente tropeçamos. É ilógico pensar que não recairíamos. Não é um Lucky Strike (golpe de sorte), sabemos disso. Mas continuamos jogando, afinal um gol contra os sete que já marcamos não nos fará perder a partida. Dois cigarros: um pra mim, um pra meu amor-próprio. Eu e ele tragamos, transamos e trazemos novos paradoxos pro velho cinzeiro. As cinzas dos pensamentos renascendo como fênix e morrendo – como fênix. Dois cigarros: um pra morte e outro pra vida. Medo e desejo brincando na corda bamba da distância. U...

Caminhos

Ainda me pergunto onde é a fronteira entre raiva e tristeza. Heranças da relação, promessas inescapavelmente fugitivas, mais um crime sem solução… Vários são os caminhos dessa longa estrada. Como as visões distorcidas da vida após a morte. Afinal, zumbis só se alimentam no imaginário. Mas o que é viver senão um passeio no mundo dos pensamentos? Viajo por entre memórias e projeções. Percebo o óbvio: só tenho esse presente. Uma bússola estática me navega desde o Norte até este Janeiro. Ela me aponta raivas e tristezas. Não somente as que vivi, mas sobretudo as que com prazer compartilhei. Eu me esforço muito para discernir quais sentidos — raiva ou tristeza — eu devo ou posso seguir. Entro na contramão de vez em quando. Atalhos da vida linear. Mudo de marcha e meu câmbio sempre me impulsiona ao exterior. Belos horizontes despontam novas experiências. Não só excrucia ou extermina o melhor de mim, mas também excita e exercita. Percebo o que a estrada sempre quis mostrar: o caminho a frente...