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Mostrando postagens de setembro, 2010

Dá um tempo! (parte 3)

Parte 2 | Parte 1 José foi correndo até a carteira para ver se o sagrado bilhete da Mega-sena estava lá. Ele já podia se sentir andando dentro de uma Ferrari amarela quando alcançou o objeto com seus anéis de ouro. Abriu-a. — Cadê? Cadê? Cadê? Cadê? — palrou incessantemente enquanto perscrutava sua carteira. — Nããããoo!!! Sim, ele lembrou que havia esquecido sobre a bandeja, junto às notas fiscais, o ingresso que lhe garantiria o diploma eterno de vagabundo. E agora o telefone tocava mais uma vez: o que dizer para Marcelo? José caiu em lágrimas. — Marcelo... — gemeu José e travou em soluços. — O que foi, José!? — disse instigando-se. — Ganhamos!? — falou Marcelo contagiando-se com o choro do amigo. José não conseguia falar. Estava atônito! Por um instante sua vida era fácil, agora voltava a ser difícil, talvez mais difícil que antes: mais uma culpa monumental na sua história. As palavras dos dois lados da linha embargaram: José por tristeza, Marcelo de alegria. A calmaria ce

Dá um tempo! (parte 2)

Parte 1 Quando José chegou à casa, sua moral se encontrava num estado de apoplexia. Então por um átimo segundo, ele resolveu sentar-se e estudar para sanar seu cérebro carente do conteúdo programático de Hidráulica II. Em outras palavras: a culpa volátil por ter sido boêmio a semana de prova inteira enfim se fez presente. Viscosidade, pressão osmótica, telefone, brrriiimm! — Você viu? O vencedor é daqui! — Que vencedor? — Da Mega! E saíram 3 números, que eu me lembre, em que a gente apostou. Olhe o bilhete, pelo amor de Deus! — Tá certo. Espera — disse José enquanto vasculhava seus bolsos. — Não estou encontrando. Deixe eu procurar na bolsa. Eu te ligo daqui a pouco. Começou aí a peleja. Primeiro o Zé fuçou a bolsa, depois folheou o caderno, voltou aos bolsos, olhou embaixo da mesa, do sofá, da cama, dentro do guarda-roupa, na bolsa de novo, nos bolsos de novo, na cueca, dentro dos tênis, no escritório e quando estava a caminho da sala, mais uma vez o telefone toca. — Dig

Dá um tempo! (parte 1)

— 3,7! Este é o resultado com que você espera ser aprovado? — imprecou para si mesmo com o velho e inútil tom de automoralismo. — Não vou mais sair durante a semana — continuou blasfemando. José teve uma semana praticamente inteira para estudar para o exame de Cálculo III na faculdade, mas como era de costume resolveu protelar o estudo mais um pouquinho e despretensiosamente sair com os amigos para desestressar, ou dar uma cochiladinha para descansar, ou uns amassos em Jacqueline porque ninguém é de ferro. Sem contar com Jéssica para variar o cardápio e com Jennifer para não mudar de letra. “Triple Jay” se gabava dizendo aos amigos em outra saída durante a semana. O maioral. E o exame? “De próstata?” Como todo maioral que se preze, suas notas eram um lixo. O reflexo da satisfação da sua consciência estava ali cuspido em dois dígitos. Três vírgula sete. É melhor por extenso, pelo menos não soa tão miúdo. Devolveu a folha de papel higiênico usado ao professor e foi conversar com se

Mãozada.

Odeio acordar ou perder o foco de um sonho bom. Recordo até a vez que ouvi ao ver um filme, na casa de Clênio com o pessoal da agência, que se você puder olhar para as mãos durante o sonho, marca-se ali um ponto na sua memória que permite acessá-lo toda vez que você voltar a fitar o pulso. No filme também dizia sobre olhá-las viradas para cima e que dessa forma, e somente dessa forma — não emborcada — é que dava para erguer a base onírica. Acho que era isso, porque no meio do filme eu e Cilede estávamos conversando sobre uma coisa completamente adversa, supérflua. Só o Clênio mesmo para achar esses filmes abstrato-inside-cults legais. Clênio e o namorado. Aliás, o namorado dele também deu umas boas bocejadas que eu vi. Fato é: baboseira televisiva. Olhei as mãos de toda forma. Palmas para cima, unhas à mostra, de lado, inclinada... Atrelei-me tanto àqueles meus dez dedos que ao dar tino, havia esquecido do que se tratava o sonho. Contudo, lembrei-me de que minhas unhas estavam péssimas

Bom partido.

A diferença entre nós, palhaços, é que eu ganho dinheiro. É engraçado ver como brasileiro é empenhado no esportividade televisiva. Basta passar na TV e lá estão todos exibindo seus brasões amabilíssimos no único intuito do júbilo próprio, como se todos tivessem de engolir o incrível esforço de gritar na frente de um tubo de imagens. Na política não é diferente. A maioria dos tupiniquins faz alarde ao expressar em quem vai votar. Ou em quem não vai votar. E com o mesmo esmero dos torcedores para que todos engulam a opinião absoluta. Eu disse opinião? Quis dizer verdade. Talvez a única discrepância entre o buzinar pelas ruas da cidade quando seu time ganha o campeonato e o buzinar por essas mesmas ruas numa carreata é o sentido poético, humanitário e libertador. Sim: o futebol é, acima de tudo, arte. É o próprio espírito carnavalesco que baixa nos seus torcedores deixando-os endemoniadamente — e gratuitamente — felizes, completos... bêbados e vândalos. Brasil, carnaval, futebol. É

O novo convertido.

Encostou-se num carro estacionado sobre a calçada. Não havia nada para fazer naquela noite de domingo. Aliás, havia. Dúzias de pessoas o faziam ali diante dele, no outro lado da rua. Ministério Grão da Vida. De um banner verde-limão saltavam aquelas três palavras pretas que nomeavam o lugar. "Brasileiro burocratiza até o céu". Por instantes lembrou-se da sua mãe. Ela era daquelas obreiras que empurram a cabeça alheia, palra mensagens celestiais — ou seria só "qual é a palavra mesmo?" de uma conversa ordinária — e pula dizendo ser Deus passeando pela igreja. "Quanta pretensão", pensou. Enquanto isso, a missionária começou a discorrer sobre seu floreio preferido: o dia em que o assaltante dispensou-lhe o despojo. E que Deus a teria coberto pela armadura divina. E que a partir de segunda a igreja se uniria numa campanha de oração — "e dízimo" — para que o Rei dos Ministérios da Morosidade Administrativa lhes reparassem a petição. Um olhar o notou.

Copo d'água em tempestade.

O clima estava tenso no consultório, mas nem a terapeuta, nem seus fregueses o notariam. Talvez por hábito, talvez por ensejo, afinal, não se vai a psicólogos para compartilhar a primavera. Roberta e Roberto Praça procuravam mais uma vez a brandura na tempestade matrimonial. Pelo menos diziam procurar. E a outra moça da sala lá estava fazendo sua cara de terapeuta. Aquela cara de quem entende tudo e nada ao mesmo tempo. — Acredita, Vanusa, que ele sequer me dá bom dia quando acordo? — Minha mãe dizia que não se precisa dar bom dia àquele com quem se dorme. — Viu? Por que não se casou com sua mãe então? — Tá vendo? — Vendo o quê? Que sua mãe não soube lhe educar? — E vai ser você que vai? — Viu? Você precisa ler mais! — Não comece. Essa água já está na fossa, virou chorume. — Quanta amargura! Aposto que a sua fotografia da água teria chifres. — Virou para a psicóloga e continuou — Vanusa, ele está falando do livro que comecei a ler. De um cientista que afirma que a á

Todo garçom é psicólogo.

6 da manhã e o café automaticamente amargo estava na mesa. O cuscuz, os ovos, salsicha, pães e manteiga. 6h30m e ninguém, salvo seus filhos, foi comer. Seu marido correu da cama pro chuveiro, do chuveiro pra roupa e nem sequer abocanhou-lhe um pão ou bochecha. Estava atrasado. Seus filhos e emprego dependiam da sua corrida. Se não tivessem inventado de passar a noite em claro, talvez estivessem todos à mesa, como ela esperava, tendo prazeres estomacais. Passiva, a esposa assistia ao seu portão parindo toda sua família. Alguém lhe cumprimentara. Lambera-lhe, na verdade. Garçom. Odiou-se por isso. O único contato bucal foi a língua de um cachorro que, por ironia, tinha o nome de um subalterno. — Garçom! Muxoxava uma vizinha. Oi, Teresinha. — Oi, como está? — Tudo bem, graças a Deus! E você? — Tudo bem, graças a Deus! — Pois tá. Como estão todos? — Tudo bem, graças a Deus. Responder-lhe-ia a mesma frase se a mulher continuasse com o interrogatório mote do falatório matin

Nós de gravata.

— Moço, o senhor pode me levar na maternidade? Meus pontos estouraram, olhe. É muito fácil amar o próximo. Distante, é. Ali na TV, aqui no blog é sempre gratuito apontar e julgar a marginalidade. Romanceá-la, resolvê-la, cheirá-la, abraçá-la é mais fácil ainda... aqui. Com nosso olhar norueguês pensamos que não estamos encardidos com isso. Antes fosse apenas sociologicamente! A moeda com que você compra seu pão já passou na mão de quantos indigentes? Meu papel, longe de ser hipócrita ou imparcial, é dizer que a sua unha encravada é o maior problema do mundo. Porque se pararmos para tentar resolver o mundo, ele nos dá a pior das rasteiras: "Eu não estou assim, eu sou assim". É como uma forca de infinitos nós: mesmo salvando um da asfixia, outros nós se apertarão. E não nos cabe nada a não ser nosso egocentrismo. Conformar-se, meus caros, é pior que morrer.

Todo santo jaz.

Hoje papai faria 96 anos. Ou seria 97? Quer dizer, é hoje? 26 de fevereiro... é, é hoje sim. Honestamente não quero ser como ele, mas a genética é fogo. Cidélia tem razão quando vem dizer que estou dando trabalho. Eu não o queria dar! Hoje, mais do que nunca vou tentar não ser meu pai. Contudo, ele não era só estorvo. O que sei de carro: das velas aos faróis, por exemplo, devo a ele. Por outro lado, não posso dizer o mesmo que todos os filhos dizem dos seus genitores quanto a austeridade. Era boemio. Punha arroz e feijão, mas esperava carne. Batia, eu acho, em mamãe. Mamãe: Santa Erliete. O Senhor viu que ela era valiosa. Cuide bem dEle, mamãe. Sei que fazes muito por mim aí. Acho que o Senhor tirou-lhe cérebro e deu Alzheimer para só assim suportar o que a vida lhe propusera: filhos casados, filha falecida, viuvez... Santa Erliete! Gozado... sempre depois de morto todo mundo vira Santo. Não que Santo deva ser gente viva. É muita hipocrisia. Aliás, é medo! Medo de que se desvende e lem