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Mostrando postagens de 2022

Colar de prata

Não é sua palavra que me amarga, é a saliva. Sentida e consentida, travando nossas gargantas. O silêncio já tem novas cores, eu sei. O bote assusta, mas é efêmero. O veneno  é o que machuca e permanece. Não é o olhar que me afugenta, é o medo de ficar cego. Tateio minhas lembranças com a carne. Pelos, lábios, encontro, minha – nossa! – tara. Há um mistério que eu vou descobrir, é iminente. Eu não estou preparado para ele, posso sentir. Mas nada está preparado para coisa alguma! Não dá nem pra parar, avalie pré-parar ! O balanço final nunca é final, afinal. Mudei-me de mim mais uma vez. Desmontei tudo e empacotei em baús. Na mudança, acabei encontrando aquele colar de prata que você me deu. Ele se oxidou. Mas não desisti dele. Pela polidez, descartei o sujo e remocei o brilho. Hoje reflito na prata: minha paz é ouro.

Tempo de Pipa

Ela permanecia ali em seu galho só observando aquela comédia. De todas as suas crias, ela sabia que aquela era de longe a mais risível. "Ora, 40 mil anos e continua se achando o ápice de tudo que vive! Como é engraçada essa criatura!" soluçava de tanto rir, aquele ser de idade incerta. "Eu lhes coloquei 7 buracos na cabeça para absorver tudo ao redor, mas não adiantou. Veja, por exemplo, eu lhes dei a praia de Pipa belíssima para ser apreciada. Águas mornas e paisagens inebriantes. Mas eis que, quando estão lá, eles só apreciam a si mesmos. Nas fotos, por exemplo, desfocam o presente que lhes dei, deixando-o meramente como plano de fundo borrado numa foto igual a tantas e tantas outras..." e refletiu um pouco "basta um zap meu para o Sol e tudo que é celular acaba..." E continuou "Eu vou passar cerol na mão. Vou sim!" E voltou a gargalhar.

Movimentos

Foi quando me vi com saudade do futuro que percebi o quanto estava perdido. Um vazio anacrônico me enchia de vergonha. Ora! Como poderia eu sentir saudade do que nunca tinha sido? Expectativas serão sempre desleais, já diziam os seres da Mata. Não é também que o passado me azucrine. Hoje em dia consigo, embora com dificuldade – confesso –, aceitar o óbvio. Sim, o passado já passou. O que talvez incomode mais é o gosto do futuro repetindo o passado, travoso como um Caju ainda imaturo.  Sinto-me envolvido num movimento qualquer. Nele, finalmente, vi o momento certo de errar. O objetivo é tão importante quanto o trajeto. Da travessia do Nascimento até esses tempos modernos dos Santos, tudo é um ciclo. Enrijeço ao me enfraquecer e me enfraqueço ao enrijecer. Quem se admite perfeito só não admite isso pra si mesmo – de resto, tudo perfeito, claro! Convenhamos: o equilíbrio é uma falácia gostosa. Do lado de cá, adoramos apelar para uma persona que criamos em nós e de nós: perfeita nas suas i

Cartão Vermelho

Da cor do amor. Foi assim que me tingi quando te conheci. Uma cor que nos era impossível, mas que milagrosamente em nós estava estampada na testa. Jogadores afoitos do jogo da vida. Ah, como faziam falta! Era cartão em cima de cartão: amarelo aqui, amarelo acolá... Até o juiz perdia o juízo às vezes!  Mas no geral, tudo tornava-se muito simples. Era a vida que lhe dava muitas rasteiras, portanto driblar do inevitável era uma necessidade! Carpe diem  seu peito dizia. Aproveitar cada segundo da vida! Cada momento poderia ser bom! Era essa sua mensagem. Tão trivial, tão óbvia, tão âncora... e que apesar disso, sempre esquecida.  Cartão vermelho é o fim do jogo. Dói, dá raiva, mas por fim fica uma esperança de que no próximo jogo tudo mude. Já a morte é cruel, pois ela é o fim dos jogos e de todas as suas grandes emoções.  A morte é algo que avisa pro nosso peito que agora só nos restas as pequenas emoções, que tudo pode ser muito breve... mas também eternamente lindo na memória.

Visita surpresa

Eu não sabia aonde você tinha ido parar. Fazia tanto tempo que você não aparecia! Por um instante eu nem acreditei que fosse possível: você aqui de novo!? Eu não sabia se você estava morando no Ceará ou somente nas minhas expectativas.  Está chovendo. Você chega sem bater na porta, traz as roupas do varal e atravessa meu corredor. Invade todos os cômodos como inundação. Coloca uma música, equaliza o som e me faz dançar! Só sei dançar com você também. Pude sentir o seu perfume pela sala. Em meia-hora você mudou minha vida. Você acredita que vivo até hoje com a sua herança? Fiz seu café. Tapioca com leite de coco, se me lembro bem. Olhei seus olhos e eles revelavam uma tranquilidade cândida. Era como aquelas aparições angelicais que o povo de antigamente dizia ter. Suas feições eram serenas, um quase sorriso meio safado, meio transigente. Era lindo esse sorriso. Você já vai? Tudo bem. Obrigado pela visita. Eu estava mesmo morrendo de saudade! Volte sempre! Volte mais! Apareça, amor-própr

100 sentidos

Vários sentidos para seguir também não me fazem sair do lugar. Os sentidos que me atravessam me dão possibilidades às quais resolvo me agarrar. Aceito a impermanência porque lutar contra ela é inútil. Eu sei que é difícil procurar a si mesmo. Mas tenho certeza de que fugir é ainda pior.  Os olhares focam nos defeitos e o coração, nos medos. A mentira é a lei. Não gosto de nada disso. Todos querem ser protagonistas na vida dos outros. É sobre isso e tá tudo bem, né? É apavorante a necessidade de aprovação! Desossei todos os meus leões e fi-los filés. Assim, perdi a graça para gente sem graça. E que bom! Amoleci minhas carnes e, dentre elas, o coração. Aprendi-me mais forte e mais fiel a vida por isso. Aonde quer que eu vá, a procura me procura. Escapulo ao que me é expatriado. Mais uma vez: sem nem saber por quê. O instinto é meramente Karnall. Indo mais fundo dentro de mim, eu chego mais longe. Viajo entre línguas e horizontes. Delícia de novo! Delícia do novo! As águas que outrora

Bebaço

Ele se embriagava pra seguir a vida.  "Sem uma boa dose não tem nem propósito viver!". Ele sabia que a bebida dificilmente tornaria as coisas mais fáceis. Mas ele não focava no advérbio nessas horas. Não era o "dificilmente" que importava pra ele ali! O fato é que as coisas se tornariam mais fáceis em algum momento! Havia a possibilidade disso! As coisas poderiam se tornar mais fáceis! "É difícil, mas podem..." dizia trôpego com seu bafo forte.  E continuava: "Esperança é o lembrar de não sofrer, é o contrário do pesar. Isto é, o APESAR. É usar o APESAR na vida. Porque APESAR de estarmos passando por um momento ruim, um momento bom virá! APESAR de termos partes desagradáveis na nossa história, eles não resumem toda a nossa vida. APESAR de você, amanhã vai ser outro dia..." e parava pra entornar outro gole.  "Veja, a dor nunca vai deixar de ser dor. E eu não quero negá-la aqui. Não quero dizer que eu não tenho dor – seria um erro terrível, al

Meu poeminho do contra

Pessoas sábias não são as que sabem demais. O vernáculo as confundiu. Pessoas-sabiás: essas sim sabem demais!

Alice

Ali nasceu, Na flor do Nordeste, Num calor da peste O mais lindo perfume. Aliando seu cheiro ao dulçor De sua voz que emanava Como sempre e espalhava Palavras-conforto. Ali se iam os dias, Os meses, os anos O voo dos que amamos, O re-pouso de tanta dor. Ali a sábia sabiá e o bem-te-vi que tanto bem em ti via cantam agora em alegria com seu revoar.

Oculista

Sabe, doutor, minha vó até hoje chama de oculista aquele que, na verdade, é oftalmologista. – Ah, é normal. Acontece direto! Não me incomoda. – Pois é... A quem poderia incomodar? – Nem te conto... – Verdade... – E agora? Você consegue ver? – Que grau é esse? Muito severo? – Não sei agora, o importante é que você veja sem dificuldade. – Mas para vermos algo de verdade, não precisamos nos esforçar? – É, você pode viver confiando a um só olho a sua visão. – É grave assim meu grau do olhar direito? – É bem alto. – Engraçado que não noto essa dificuldade toda. – Eu sei. – Na verdade, acho interessante a ideia das imparidades no meu corpo hoje em dia. – Sempre? – Claro que não! Eu gostaria, às vezes, de um equilíbrio. Mas acho interessante não ser simétrico. – Interessante... – Não acha? – ...você não consegue mais diferenciar “observar” de “absorver”.

Quase

É nas oscilações da vida que podemos ver a nossa amplitude. É lá no fundo do poço, com água até o pescoço, que avistamos a crista da onda – percebendo que não estamos nela. E nos movemos, com uma força que não sabemos de onde tiramos, rumo a alguma direção.  Mesmo mistério dos altos e baixos cardíacos, pulmonares, marítimos... pelos quais vivemos, respiramos, navegamos sempre. Ou quase sempre. O tempo se relativiza na divisa com o infinito. Achamos que o sentimento será eterno enquanto durar. Notamos que o duro é nos manter flexíveis. Brincamos de Deus com Ele. E não dá para fazer isso. Nenhum Einstein de batina, de terno ou de regata precisava dizer o que já era explícito. Ou quase explícito. O percurso da vida está implícito dentro de cada ser vivo. O vírus da humanidade nela mesma se propaga sem sentidos. Quem sou eu para apontar direções? O homem está cada vez mais virulento. Vagamos e pensamos que chegamos ao fim nas palavras repetidas dos homens que apontam verdades. E a minha pe

Interseções filosóficas – Parte de nós.

– É um show de horrores! Chamaram a travesti de "ele"! Referiram-se a uma mulher cis como "mulher de verdade, não uma travesti"! E teve ainda piada sobre "o pinto do traveco"! Um absurdo descomunal!  – Realmente, desrespeitoso. – Pois é. Isso só mostra como estamos numa bolha minúscula e o quanto que quem está de fora dela ainda não tem a noção do que é respeitar o próximo, de como tratar... Isso é revoltante! – E o que motiva sua revolta? – Não sei... queria viver num mundo mais igualitário. – Mas há aí uma tremenda incoerência no seu discurso, você não vê? – Eu? Incoerente por achar que todos mereçam respeito? – Não. Nada disso. Todos merecem respeito e eu concordo com você nisso. Falo da incoerência de "viver num mundo igualitário", sendo que você não faz um esforço para isso. Afinal, a ideia de viver na sua confortável bolha não dialoga com a ideia de interagir com o mundo. O problema é morfológico. A bolha é intransponível. Só participa da