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A amada professora.

— Com licença, professora, eu poderia assinar a lista de chamada?

— A aula já acabou.

— Eu sei, professora, mas o que é que custa?

— Lógico que não. Eu tenho uma reputação a zelar!

— E eu um relacionamento a manter!

— ...

— Hoje é o aniversário de 3 anos de namoro, então tive de...

— Desculpe interromper, mas não vai dar. Isso não é motivo!

— Não é motivo? Você parece minha namorada. Nada para ela é motivo.

— Viu como anda a sua reputação?

— Não, professora. Você não entendeu: ela nunca compreende o meu lado, tal qual você agora.

— Agora e há duas semanas consecutivas.

— Acho que vocês duas sentem prazer ao me ver assim, humilhado.

— Como é?

— Aliás, digo que a senhora parece com ela, mas cada qual é única, eu sei, e não tem como responderem da mesma forma a um mesmo estímulo et cetera e tal. Porém, a senhora é bem mais coerente e, absolutamente, mais inteligente. Porque a senhora me detesta por justa causa. Ela, não. Você acredita que ela estava cogitando me dispensar e pedir ao pai dela que desfizesse o contrato de exclusividade da minha marca de tomates orgânicos que ele revende no mercadinho da família dela? Tudo isso porque eu cheguei no dia seguinte ao que marcamos de ir para o cinema ver um festival de filmes abstratos coreanos. Ora, eu pensei que fosse no domingo, mas não sei por que burros d’água o festival terminara no próprio sábado!

— Cargas d’água.

— Viu? O que eu falei que ela é injusta!?

— Não, estou corrigindo apenas o que você disse: não é burros d’água, é cargas d’água!

— Para falar a verdade, a senhora é bem além dela: a senhora me ensina coisas que nem minha mãe saberia! Ela sempre fala burros d’água.

— A aula de hoje foi sobre isso.

— Sobre mal entendidos?

— Não: sobre expressões e partículas enfáticas.

— Professora, você é mesmo incrível! Não sei onde estava a minha cabeça quando lhe disse que se parecia com minha namorada. Minha namorada é rancorosa: ela se ressente de coisas que fiz (ou geralmente deixei de fazer) de há dois domingos atrás! E aí está você — completamente superior a orgulho e mágoas — me dando aula de forma completamente gratuita e eficiente, aplicando e corrigindo-me da maneira mais didática possível. Adorei a aula, onde está a lista de presença?

— Ai, ai! Não sei o que é que faço com você, viu?

— Deixe-me assinar o papel!

— Tá! Mas que não se repita!

— Claro que não, professora!

— ...

— Muito obrigado, professora.

Hunf! ... Ah, e o negócio dos tomates: como você fez para que ela não lhe destituísse o dote?

— É fácil: elogiei-a.

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