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Negócio da China.

— O que é castrado?

— Por que a pergunta, Júnior? — replicou o pai.

— Vi hoje na TV que os gatos de rua tinham que ser castrados. Aí eu não sabia o que significava.

— Ah... É o seguinte, Júnior: os gatos de rua transmitem doenças a nós. Para que eles não se procriem, se faz, então, sua castração. Deixando-os castrados.

— E isso é ruim?

— O quê?

— Eles se procriarem.

— Procriar é se reproduzir. É passar adiante a herança genética da família. Como eu posso dizer? É ter filhos, entende?

— Para que mais pessoas não peguem doenças dos gatos!

— Isso mesmo!

— Ah, bom...

Cacazinho era filho de Castro e Teresa Canavarro. Sua alcunha veio da aglutinação de Castro Canavarro de Oliveira Júnior, dada com muito carinho pela sua mãe, que, por sua vez, atribuiu à forma caprichosa que seu sogro chamava o marido, Cacá.

Por muita paixão e dedicação ao lar, ambos — Castro e Teresa — logo entraram em acordo que aquilo que se expandia no ventre de Teresa haveria de se eternizar com o nome do par perfeito, da contratual relação atemporal: Castro Canavarro de Oliveira... Júnior.

— Júnior ou Filho?

— Filho é melhor.

— Ok.

— Pensando bem, é melhor Júnior.

E assim escolheram o nome daquela simbólica criança.

Melhor falando, geniosa criança. Cacazinho era aquele típico pirralho leonino que conseguia de maneira magnífica unir manha, sagacidade e inteligência. E, por que não, mimos, superproteção e déficit de atenção. Em síntese, Cacazinho era o prodigioso, o impossível, o encapetado filho único. Aquele que orgulha o pai ao dizer-lhe que quando crescesse queria ser um biólogo igual a ele, para desanuviar a surra tão ameaçadora.

— Júnior, Júnior... — Essa era a mais dolorosa punição que seu pai lhe submetia.

O pai era o único a chamar o filho de Júnior. Não só pelo narcisismo de se lembrar o tempo todo do seu próprio nome, afinal, “Filho” lhe soava no mesmo tom. Chamava-lhe Júnior por associar que o sobrenome Júnior o remetia a uma cópia de si mesmo. Ou seja, de maneira análoga, pode-se dizer que o Sr. Castro via no pequeno o destino perpetuado de uma traça. Não porque Júnior tenha feito cena, comendo páginas de livros. A comparação situa-se mais no sentido do crescimento e desenvolvimento corpóreo (ser seu clone em miniatura) e comportamental (como comer livros velhos de biologia) do inseto.

Entretanto, a dedetização ocorreu assim que o gigante segundo filho sombreou seu até então inabalável reinado. De nada adiantaria berrar, espernear, chorar, saracotear que nem sua forjada infecção intestinal tiraria os holofotes do seu irmão mais novo. Isso se tornou convicção num dia fatídico em que Cacazinho queria sentar-se numa dessas cadeiras altas, tal qual seu irmão de dois anos, num restaurante chinês, fazia.

— Essa cadeira é para bebês! Você não é mais neném, Júnior!

Com essa explícita evidência de que seu pai não o via mais do mesmo nível que o irmão, arremessou sobre a mesa o pires contendo molho shoyu, lambuzando além da mesa, o babador do irmão e o ego do pai.

— Júnior, Júnior...

Ao chegar à casa levou sua primeira surra.

Como toda criança esperta, Cacá Júnior viu que não seria mais da mesma forma que reconquistaria seu trono e por isso dedicou-se aos estudos no intuito de regozijar o atual intransigente olhar patriarcal. Empenhou-se tanto, que, na escola, aquele incurável diabo era tido como o aluno exemplar, sendo agora agraciado por todos os elogios possíveis nas reuniões (antes assiduamente frequentadas) de pais-e-escola.

Talvez por comodismo, talvez por cansaço ou mesmo por opção, Castro Júnior foi adotado pelo conhecimento. Tamanho era o seu esmero que sua postura era motivo de chacota na sala de aula. Um típico nerd. Tão nerd que seu esporte favorito agora era xadrez.

Começou sendo apelidado por amarelão, graças aos seus cabelos e pele solares. Depois vieram vários outros efêmeros agrados, até que chegou, em virtude da sua vitória no campeonato de xadrez, ao frango xadrez, que por tabela virou molho shoyu e simplesmente Shoyu. Grande lógica!

Shoyu cresceu e tornou-se intrinsecamente Shoyu. Tão Shoyu que as pessoas acreditavam muitas vezes que aquilo era o que estava impresso na sua identidade. Castro Júnior, por outro lado, via no apelido o supetão necessário para tomar um rumo diferente. “Nome novo, vida nova”. Morria-se ali, em definitivo, Castro Canavarro de Oliveira Júnior e nascia Shoyu, que era apenas filho de Castro Canavarro de Oliveira.

Com o gastar do tempo, as distâncias só iam se agravando. Tanto que ao mudar de cidade e morar sozinho, chegou a passar seis meses sem ver sua família genética. Inclusive, passaria mais, mas noutro fatídico dia seu pai precisaria ficar hospedado em sua casa para resolver os trâmites de um imóvel que compraria naquela cidade. Quando adentrou na sala logo viu um pomposo mural com fotos, recados e um vistoso “Shoyu” no topo do quadro.

— Shoyu?

— É. É assim que me chamam.

— Eu gosto de shoyu — mentiu dizendo a verdade.

— Haha! O senhor quer que eu lhe prepare algo?

Cacazinho gostava de cozinhar. Por ter se tornado professor de química, costumava falar que a copa era o laboratório do dia-a-dia e a comida, os produtos de uma reação. Já que discorreu sua vida se alimentando em redutos chineses, adquiriu extremo conhecimento naquela modalidade e resolveu prepara um yakisoba de camarão para o velho.

Perfeccionista e muito competente, Júnior encarava como uma afronta se alguma coisa que saísse de seu fogão não fosse agradável. Sua receita sempre tinha as proporções estequiométricas ideais para se chegar ao sublime paladar. Uma vez até lhe convidaram a ser chef! Mas preferiu seguir lecionando de forma culinária.

Camarão, acelga, macarrão, cenoura... e molho de soja. Em 20 minutos estava pronto o prato que qualquer restaurante chinês gostaria de patentear. Mas, para o desânimo de Júnior, seu pai lhe perguntou:

— Meu filho, você tem shoyu?

— Tem: eu.

Comentários

  1. BOA! Gostei demais. Nada como pode escolher né? Viva liberdade de ser quem se é!
    Te amo bobizinho!

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  2. Haha, manda bem nas linhas de diálogo, como sempre. Ei, Bob, em parceria com outros caras, escrevo no blog: totolunatico.blogspot.com - se der, me segue nesse também; e a gente te segue por lá. Abraço!

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