– É um show de horrores! Chamaram a travesti de "ele"! Referiram-se a uma mulher cis como "mulher de verdade, não uma travesti"! E teve ainda piada sobre "o pinto do traveco"! Um absurdo descomunal!
– Realmente, desrespeitoso.
– Pois é. Isso só mostra como estamos numa bolha minúscula e o quanto que quem está de fora dela ainda não tem a noção do que é respeitar o próximo, de como tratar... Isso é revoltante!
– E o que motiva sua revolta?
– Não sei... queria viver num mundo mais igualitário.
– Mas há aí uma tremenda incoerência no seu discurso, você não vê?
– Eu? Incoerente por achar que todos mereçam respeito?
– Não. Nada disso. Todos merecem respeito e eu concordo com você nisso. Falo da incoerência de "viver num mundo igualitário", sendo que você não faz um esforço para isso. Afinal, a ideia de viver na sua confortável bolha não dialoga com a ideia de interagir com o mundo. O problema é morfológico. A bolha é intransponível. Só participa da bolha quem é assim assado. Fechamo-nos – e aqui me incluo – num individualismo pequeno e isso é péssimo. Achamos que somos referência. Achamos que sabemos tudo.
– Como assim? No meu ponto de vista...
– Tá vendo... desculpa te interromper. Mas a questão não é "meu ponto de vista". A questão está na polisssemia de "nós".
– Polissemia? O que é isso?
– Poli são vários. Semia são sentidos. Então, o problema está nos vários significados dos "nós". Por exemplo: existem aqueles nós que são formados pelo amarração de fios. Daí, eles podem ser como nós, ou seja, nós fortes, nós cegos, nós frouxos... Existem até os nós na garganta, na cabeça, nas situações da vida...
– Sim... e o que isso tem a ver com o que eu tô falando?
– Admiro sua pressa em aprender! Ela é matéria prima para o nosso desenvolvimento. Espero que você admire mais ainda o processo de aprender, de entender que todo processo de desatar nós requer tempo, persistência, logo, pois, paciência.
– Ok...
– Existem também nós. Nós dois. Aqui, eu e você. Mas também existem outros nós. Há nós, os gays. Nós, os brancos. Nós, os brasileiros. Nós, os privilegiados. Nós, os detentores da informação correta. Nós, também detentores da empáfia. Nós, os humanos infalíveis. E mesmo assim com tantos de nós, ainda nos encontramos desse modo, falidos humanos... resumidos à mesquinhez e a facilidade de dizer "dá um Google" que você descobre como se relacionar com esse ou aquele tipo de gente. Não foi o Google quem me ensinou a viver. Ninguém vive no virtual. Meu oxigênio está aqui ao meu redor, não na tela desse PC, não na forma de uma bolha.
– Mas é essa bolha quem nos protege e nos acolhe do jeito que somos!
– Bolhas são intransponíveis e muito frágeis. Se houver interação com o meio, deixam de existir. Deixam de ser bolha. E então? Onde fica a proteção e o acolhimento? Você precisa decidir se quer viver numa bolha pequena ou grande, e eis aí uma proposta interessante. Que tal pensarmos que a bolha é esse planetinha azul em que pisamos?
– ...
– Nessa hora é muito normal não sabermos como lidar com essa contradição. E passamos a repetir o ciclo que nos foi ensinado: rejeitar acima de qualquer hipótese aquilo que nos é incoerente. É um mecanismo internalizado do cérebro. A depender do nosso nível de apego às nossas convicções, podemos até achar em algum momento desrespeitoso. Um mecanismo de defesa típico. E nos mirramos a qualquer informação, qualquer som. Nem o bem, nem o mal podem nos fazer algo agora. E talvez por isso, gostaria de continuar essa conversa depois... que tal?
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