Pular para o conteúdo principal

Entre a sombra e o reflexo.

Tenho a impressão de que todas as coisas que poderiam ser simples e descomplicadas são justamente as mais intrincadas e complexas. E não é que eu me ache a estrela Dalva dos sentimentos adversos, porque sei muito bem que nesse infinito que não ouso explorar devam existir vários outros corpos celestes capazes também de emitir coisa parecida a isso que sinto. O ponto é que, com certeza, “igual” jamais alguém poderá sentir – assim como, obviamente, eu nunca terei sentimento idêntico ao de outrem. Aliás...

Aconteceu hoje. Acordei e, como de costume, tratei logo de minha higiene matinal. Fiz xixi, lavei minhas mãos e enquanto escovava os dentes já pensando no banho, notei uma coisa que me apavorou. Ela estava ali, com a boca espumando frente a mim numa janela vítrea que se costuma chamar espelho. Não era seu cabelo riçado ou seu rosto inchado que me causara surpresa. Era o conjunto. Ela me olhava despretensiosa com um olhar pétreo, desfocado, perdido, enquanto eu, pelo outro lado – do vidro – me encontrava atônita!
Não reconheci aquela imagem invertida de mim. Contudo não era só o físico que me incomodava: era sobretudo a enxurrada de dúvidas que brotava em proporções geométricas a cada pergunta não solucionada: Que olhar era aquele? Quais eram seus sonhos? Ou seriam meus sonhos? Por que eu insistia em me achar distinta daquilo que via?

Algo me incomodava, isso era fato. Mas o quê? Foi aí que captei uma onda eletromagnética provinda de meus fótons refletidos (ou seriam emitidos) decodificada pelas minhas antenas cerebrais a qual dizia que minha cara refletida trazia consigo quatro décadas. Quatro décadas de escolhas. De escolhas que muitas vezes não foram minhas, não foram inatas de mim. Escolhas que não foram certas. E foi então que nessa específica manhã, que eu percebi – ou quis perceber – quem eu era. Daí meu estranhamento comigo mesma.

Minha sombra, entretanto, continuava a mesma: blasé, direta e difusa. E, por isso, por achar finalmente algo meu com o qual eu ainda era habituada, de certa forma me identifiquei. Eu não era aquela da imagem, eu era aquele borrão escuro sem feições.

Todavia, após ver os dois ali – sombra e reflexo – por tanto tempo, sem querer esbocei um sorriso. Um sorriso impensado, sincero, gentil. Um sorriso do ridículo que de tão digno se fez refletir sobre o espelho (e obviamente não pela sombra). E graças àquilo – aquele simples rascunho de alegria – pude sentir que eu ainda fazia parte de mim. Logo, terminei, por fim, me entregando e rindo, tendo ainda que dar explicações bestas a uma terceira “eu” que me perguntava: o que foi isso, hein?

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Tá.

Seu corpo tem a chave dos meus desejos. Seu beijo: língua na minha libido. Peito cheio de aspirações: que também me pira e inspira. Seu jeito, sua voz, seus segredos, seus sussurros, suas taras: tudo. Sem medos ou grilos de mim. Silêncio corrompido pelo seu gemido. Tudo agora tem sentidos: vai e vem. Sua carne boa, sem nervos, no ponto, suculenta. Obrigado, mas sem brigar comigo. Leve levo a sua cintura – que me aprisiona como um bambolê. Seu ciúme: minha alforria. Você talvez não saiba, mas eu sei onde você sente. Afinal, como você vai embora, algo fica pra sempre pra trás. Aliás, você não vai mais embora. Você virou minha pintura, quadro vivo na minha memória. Queria saber desenhar... mas pra quê? Se eu posso escrever sem pontuações as mais diversas versões de como você tá suas FR /sɥa/ verb second-person singular past historic of suer suer -uːə(ɹ) UK US noun Someone who sues; a suitor. suer FR /sɥe/ verb to sweat ...

Na cigarreira.

O vício sempre parece uma boa opção em algum momento. A gente nunca consegue ser invicto contra ele. Parece que ele, o vício, é a única solução que nos aceita e nos é impossível renegá-lo para sempre. A vontade contumaz fica lá, urdindo pela sua recaída, até que ela vence dessa vez (mais uma vez). Resiliência silenciada na calada da noite das respostas que tive que inventar. Aquele silêncio do estalar da pólvora pra retomar o fôlego. Sempre recaímos. Em uma hora ou outra inevitavelmente tropeçamos. É ilógico pensar que não recairíamos. Não é um Lucky Strike (golpe de sorte), sabemos disso. Mas continuamos jogando, afinal um gol contra os sete que já marcamos não nos fará perder a partida. Dois cigarros: um pra mim, um pra meu amor-próprio. Eu e ele tragamos, transamos e trazemos novos paradoxos pro velho cinzeiro. As cinzas dos pensamentos renascendo como fênix e morrendo – como fênix. Dois cigarros: um pra morte e outro pra vida. Medo e desejo brincando na corda bamba da distância. U...

Caminhos

Ainda me pergunto onde é a fronteira entre raiva e tristeza. Heranças da relação, promessas inescapavelmente fugitivas, mais um crime sem solução… Vários são os caminhos dessa longa estrada. Como as visões distorcidas da vida após a morte. Afinal, zumbis só se alimentam no imaginário. Mas o que é viver senão um passeio no mundo dos pensamentos? Viajo por entre memórias e projeções. Percebo o óbvio: só tenho esse presente. Uma bússola estática me navega desde o Norte até este Janeiro. Ela me aponta raivas e tristezas. Não somente as que vivi, mas sobretudo as que com prazer compartilhei. Eu me esforço muito para discernir quais sentidos — raiva ou tristeza — eu devo ou posso seguir. Entro na contramão de vez em quando. Atalhos da vida linear. Mudo de marcha e meu câmbio sempre me impulsiona ao exterior. Belos horizontes despontam novas experiências. Não só excrucia ou extermina o melhor de mim, mas também excita e exercita. Percebo o que a estrada sempre quis mostrar: o caminho a frente...