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Partida.

No princípio, mesmo antes de tudo tomar corpo, já se dizia que aquilo não iria dar certo, que era impossível, inviável... contudo, como era de se esperar, a obstinação disse que iria fazer mesmo assim e iria provar por a + b que ela estava certa. Os incrédulos por sua vez tiveram de aceitar resignados a tentativa, afinal nada podiam com a sua vontade. E foi assim, enquanto a concordância ainda pensava no que responder, em meio à discordância e obstinação que nasceu o projeto d'A Terra da Concordância. Um projeto ousado que, admitamos, era bonito, tinha bons princípios e tudo mais que era preciso para alcançar o sucesso.

Conforme o esperado, tudo começou muito bem. Ao norte já se ouvia o burburinho de que algo novo estava por vir. "Veja! Veja! Eu moro n'A Terra da Concordância! É ótimo morar aqui! Você deveria experimentar também!" Não demorou muito então até que a fumaça das terras boreais tomasse tamanha proporção a ponto de que o sul todo notasse que algo quente vinha daquelas bandas. Foi nesse cenário que um antigo comerciante, que vivia sempre de lá pra cá fazendo sua vida, aportou o novo conceito consigo. 

E boom!

Rapidamente a novidade se alastrou. A Terra da Concordância granjeava mais e mais territórios pelo norte,  sul, leste e oeste! Não havia um lugar onde não se ouvisse falar dela. Ela abarcava consigo a alegria, os sorrisos e joias  mais brilhantes. A Terra da Concordância começava portanto a enraizar seus conceitos de que compartilhar era bom, era o importante. Todos estavam contentes, dançando, cantando, concretizando assim as bases da nova terra.

Entretanto, eis que sem motivo aparente uma onda de calor vinda de não se sabe onde invade o multicontinente d'A Terra da Concordância. Muitos continuaram a amar o calor, a ir à praia, à piscina, ao rio, à lagoa ou mesmo ao parque para se refrescar e diziam que isso era bom. Porém enquanto alguns se divertiam com o a alta temperatura, outros passaram a destestá-la. De um lado essas ondas de calor geravam vários momentos bons, do outro, problemas e situações desagradáveis começaram a incomodar. Logo, aqueles que não tinham praia, piscina, rio, lagoa ou parque por perto e que, ao invés de tirar algum proveito do calor, não podiam nada além do que lhe suportar, resolveram ir para lugares onde as circunstâncias soavam melhores. E foi aí que tudo começou a ruir.

As pessoas que usufruíam daquele calor não queriam que os outros tomassem seus espaços, enquanto aqueles sedentos por uma gota d'água não tiveram outra opção a não ser reclamar, iniciando portanto oficialmente à ruptura da muralha que maquiava toda aquela falsa comunhão. As pessoas esqueceram que A Terra da Concordância não era algo físico, próprio e restrito. Aliás: isso nem passava mais em suas cabeças!

O que se deu foi que com o tempo, A Terra da Concordância tinha formado indivíduos que esperavam que todos curtissem o que eles dissessem. E assim, ela deu voz à arrogância figurada em opinião própria. Ela fez seus habitantes crerem que se há algo ou alguém com que eles concordassem, esse deveria ser ouvido, ovacionado e divulgado, enquanto que se há algo ou alguém com o qual eles discordassem fosse motivo para se munir empáfia, rudeza e desrepeito. Ela criou milhões de indivíduos que se sentiam plenos quando opinavam, que queriam ensinar tudo a todos, mas se esqueciam de que compartilhar é também escutar, aprender e principalmente absorver sem segundas intenções de refutação para mostrar superioridade.

A obstinação mostrou ao que veio. Provou por a + b que iria tornar A Terra da Concordância um sucesso incomparável. Quanto à pobre da concordância coitada, sem culpa de nada, vendo seu nome se propagar a torto e a direito se entristeceu com o que viu e resolveu partir para algum lugar onde ter opinião contrária não fosse motivo de iniquidade, onde não houvesse todo esse egocentrismo multiplural impelido, travestido e apregoado como obrigatório. Ela, a humilde concordância, sem ter a quem perguntar findou por questionar a si mesma se ela via propósito em se inserir nisso e simplesmente descobriu que essa luta feroz de imposições comportamentais em acordo com as normas de uma terra que nada dizia respeito a si, era algo que ela nunca quis.

E dessa maneira, sem falsa modéstia e sem hipocrisia, a concordância fez o que fazia de melhor e usou as palavras de outrem como suas sem medo do que vão pensar e descobriu que ela poderia até não saber o que lhe fazia bem, mas com certeza sabia o que não lhe fazia. E assim, arrumou suas malas, saiu à francesa e partiu rumo a um outro lugar que não sabia onde era, mas que certamente era bem longe dA Terra da Concordância, que diziam ser sua.

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