Era uma vez numa ilha deserta, um náufrago. Fazia tanto tempo que morava ali sozinho que ele já não sabia de sua origem ou o que havia além das imensidões azuis. A adaptação, por assim ser, sitiou seus pensamentos. Ou, em outras palavras, a acomodação exilou o que era desnecessário. As únicas coisas que ele sabia por ali era o que lhe podiam ensinar. E, tendo o sol como guia, aprendeu a ter disciplina, foco e determinação; tendo a lua como conselheira, passou a compreender suas fases e o que elas significavam; tendo as plantas como exemplo, descobriu que boas safras levam muito tempo para acontecer. Tudo cíclico, natural e desumano.
Por ser rei de um reino inóspito, o náufrago encheu-se de si para tornar-se Deus. O Homem é o deus do Homem. O Homem é o deus do deus. Suas crenças tornaram-se reais; suas idéias, leis; e seus desejos, o bem geral da nação.
Muitos anos se passaram e seu conforto só ia aumentando, até que ele havia se conformado supremo: a chuva caía assim, o gramado crescia assado. Exatamente tudo estava sob seu controle. Logo, na qualidade de supremo, nomeou isso de felicidade. E vivia honestamente sorrido, honestamente completo.
Certo dia, porém, seus mandamentos foram quebrados. Eis que aportara algo novo em sua, tão sua, terra. Era uma caixa pequena, que provavelmente boiara até lá vinda de outro lugar. Ao ver o caixote ali em sua praia deveras destoante ao que lhe apetecia, incomodou-se. Não antes de se enfurecer consigo mesmo por não ter previsto, ou melhor, por não ter reconhecido tal objeto, dentre todos os outros que ele, onipotente, criara. Desconhecia sequer de onde ele viera! Que ira!!!
Passados alguns minutos, conforme a lei, esperou sentado, calado, pensativo. E frustrou-se. Amargurou-se pela sua autoanálise: ele não era deus. Para ele a simples ideia de que o subconsciente de um deus age na surdina era inválida, pois ninguém o ensinara isso. Não há avaliação sem pontos de vista. Sentia-se fraco, limitado, enjaulado graças a uma coisa que os seres do mundo moderno rotacional diziam ser destino.
Agora a confusão se instalara: toda uma história caíra por terra. Nada mais fazia sentido e, depois de uma eternidade de completude, viu-se só. A realidade fuzilara seu cérebro. Todas as suas crenças, ideias e desejos morriam a cada tentativa insuficientemente coerente de tentar explicar tudo ao redor. O reino foi destruído e o monarca, descoroado.
O náufrago virou José. E José, magicamente, tinha outra história. Uma história de lembranças. Uma história que os homens como ele chamavam de realidade.
Entretanto, com José não foi tudo tão diferente: ele também ficou incomodado, zangado, descompensado e triste — por motivos que o leitor consegue bem supor. A diferença entre José e o náufrago foi, portanto, que aquele não tinha a quem recorrer, não havia outra entidade na qual ele pudesse se transformar. José era o primeiro estágio, era a base encubada do náufrago, o ovo já chocado da consciência. José era a lógica, a racionalidade, a sanidade. Ele sabia o que era o amor, assim como também o que é uma caixa e que ela veio de outro lugar. José sabia que havia outros tantos lugares e também que ele era limitado para sair da ilha.
José sabia que cedo ou tarde haveria de abrir a caixa e, por esse motivo, resolveu abri-la de pronto, mesmo sem conhecer o seu interior, nem os malefícios ou benefícios que ele poderia trazer. Ao abrir a caixa, José descobriu mais uma coisa, soube de mais uma coisa: nada.
nossa, vc me descreveu completamente nesse texto. sou josé!
ResponderExcluir"Tudo cíclico, natural e desumano."
ResponderExcluirResume tudo.
Muito bom Bob!