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Ácido

De todas as experiências que vivi e que senti, certamente uma das mais importantes que tive foi com o ácido. Todas as outras têm muito potencial de vício e eu não gosto da ideia de dependência. A dependência é um cabresto cruel da sociedade cada vez mais dita moderna. Dependência em álcool, em cigarro, em ecstasy, em açúcar,  em maconha, em cocaína, em tarja preta, em likes no insta, em endorfina, em sexo, em crenças... 

E é aqui que eu atino: se analisar bem direitinho vamos ver que sim: somos seres dependentes!

Então a questão não é evitar a dependência e sim no que devemos escolher depender, de fato. Afinal, dependemos de coisas externas para existirmos: não somos autossuficientes. "Plene"? Até a faixa 2 né, anjo? E quem diz que é, tá mentindo. Afinal, você pode até estar/ficar em plenitude, mas daí ser/viver estritamente pleno? Acho que não, hein? Talvez, inclusive, sejam esses o do pior de todos os tipos: os dependentes da independência, ou mais acidamente falando, da fachada de que são independentes.

Brincar de esconde-esconde não é coisa só de criança.

Quanto mais velho eu me torno, mais eu vejo o quanto o ego é uma invenção da sociedade para que você se adeque a alguma tribo de dependentes. Despir-se do ego é um exercício muito cansativo, é verdade. Não só porque você destrói o apego com suas vaidades inúteis, mas sobretudo porque a sociedade não aceita a não-padronização que lhe é tão natural. E você é excluído dela por isso.

Mas não tema! Você tem a plenitude da incoerência ao seu favor!

Somos todos diferentes, mas a sociedade exige perfis de TV. Exige pessoas planas e previsíveis. Quer-se uma vida-novela, uma vida onde os personagens sejam meramente vistos e repitam papeis predeterminados. Nesse tipo de sociedade não há construção a partir da reflexão. Refletir, aliás, para essa sociedade, é coisa de doido. 

E é aí que a acidez se revela magnífica!

Cansei de ver a cara dos outros que me acham doido! E é aí que eu afirmo acerrimamente: a mente que não está confusa no mundo atual é, certamente, a mais confusa de todas. Não nego: não tenho vergonha disso. Sabe por quê? Porque eu sei que todos – todos mesmo – também vivem nessa confusão na qual estou. 

E que bom! Que delícia é derreter-se nessa confusão!

A vida só é vida pela inquietude, pela inconstância. Desde o cerne, com as irrequietas moléculas de aminoácidos de bilhões de anos atrás, até hoje com este planeta virulento. E a sociedade dita moderna não quer que você seja inconstante. Ela quer que, numa crise, você se "remedie" para evitar sentir seu desejo inerente pela inconstância. E esse remédio que a sociedade lhe receita é vazio, é tarja preta, é teto preto, é apagão que apenas desliga seu cérebro quando ele mais está em processamento, em contato com sua inata e inconstante existência.

Fluir pela existência é aceitar seu curso natural.

Se você não liga um carro ou um eletrodoméstico, com o tempo, ele torna-se mais frágil e finda quebrando ou morrendo. Exercitar-se é a mesma coisa. O sedentarismo destrói a ávida vida. E esquecemos de exercitar o nosso cérebro! Justamente o órgão mais importante do nosso corpo! A sociedade não quer que você exercite o cérebro. Porque quanto mais você exercita o cérebro, mais você percebe que você não é uma máquina, e que você não deve concordar com as coisas dela, sociedade.

Libera geral, Xuxa!

Não é fácil se exercitar: cansa e dói. Mas depois, no descanso, você percebe o quanto valeu a pena. O prazer é meramente a interrupção da dor, do cansaço. E você vai vivendo para aprender a isso. A meditação existe para exercitarmos o descanso. O cérebro é o órgão mais versátil do nosso corpo: mais que a nossa língua, viu? Você, certamente, consegue mexer, dobrar e fazer coisas inimagináveis com sua língua – e ainda fala com o auxílio dela! Mas é o cérebro quem a comanda!

Aceite a bad, ela virá e lutar contra ela é mais bad ainda.

Identificar suas deficiências é de extrema grandeza, especialmente nas questões do ego. Julgar-se superior porque tem um diploma, ou tem idade, ou tem experiência, é por si só a maior expressão de inferioridade. Você sabe, no máximo, sobre si, sobre uma parte de um determinado assunto – e olhe lá! Poucos são aqueles que foram a fundo na neurociência do cérebro e estamos agora, em plena pandemia, aprendendo a importância do cérebro – que se sobrepõe à importância do pulmão ou do coração. Afinal, se você não pensar você morre. Minhas palavras são sim ácidas. 

Confesso: minha dependência é no ácido desoxirribonucleico (ou DNA, pros íntimos).

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