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Meretíssima,

Vim hoje aqui tentar interceder pelo meu cliente em prova de sua inocência. Eu sei que este já é o último apelo que eu posso fazer e quase tudo alega para que meu cliente seja realmente condenado. Sei que todas as evidências apontam para a sua culpabilidade. Sei que ele cometeu o delito e que provavelmente, ele poderá apodrecer na cadeia.

Eu vim de casa determinado a desistir de tudo – de repetir o discurso de ontem, com outras palavras só para passar o tempo da defesa. Contudo, nesses últimos instantes, um argumento desesperado, mas nem por isso insignificante me veio à mente. E ele se refere à muito distante, porém concreta, relação que a Senhora tem com meu cliente e comigo. Peço, de antemão, que escute a toda a minha sequência de pensamentos sem interrupções, para que então depois eu possa responder a quaisquer eventuais questionamentos da acusação. Ei-la:

Conforme foi provado, pela gravação, meu cliente cometeu sim esse crime: está tudo lá. Entretanto, dentre todas as provas, eu gostaria de citar uma que se refere à Senhora, ou pelo menos ao papel que a Senhora representa. Ele começa falando de sua importância na vida da sociedade e – por que não – na vida do meu cliente e na minha. Sabemos, por exemplo, que é preciso coragem e pulso firme para estar onde você está. Sabemos que a coerência e o bom senso devam ser seus alicerces nesse senso de justiça que nos rege. Logo, Meritíssima, julgar é o seu ato mais corajoso. Você detém autoridade quando julga.

Sendo assim, você é tão competente na arte de julgar que se julga até mesmo superior em relação aos meus julgamentos e aos dos demais. E eu e meu cliente nos perguntamos: quem deu esse valor ao seu julgamento? Você mesma, seu mérito? Ou a sociedade, eu e os outros?

Essa relativização se faz mesmo necessária na sua ou na nossa vida? Precisamos ser comparados ao que é certo ou errado? Você precisa julgar para nós, como indivíduos organizados, nos sentirmos alguém? Ou você é superior a isso tudo e por isso se senta nesta tribuna elevada? Sua verdade é a única verdade aceitável? Onde fica a parte que eu não quero ser obrigado a viver sob suas leis? Onde fica a parte da liberdade do meu querer? Do querer do meu cliente? O seu querer tem que ser superior ao meu? O seu desejo de justiça tem que anular o meu? O que te faz ser mais importante ou especial que eu?

Alguém, durante sua vida, já impôs uma vontade sobre o que você sentiu ou tudo na sua vida é só nuvens que nunca chovem? Ou você vai me dizer que a Senhora nunca passou por momentos de tristeza, ou de remorso, ou de arrependimento, ou de orgulho, ou de raiva em sua vida? Se nunca,  que embasamento, Senhora Juíza, te faz ser tão capaz de julgar meu cliente, a mim, a si e aos outros? Se sim, que capacidade é essa sua de culpar um semelhante por cometer um crime que você também poderia cometer? O que é o senso de justiça senão uma sensação?

Sei que não vem ao caso falar hipoteticamente sobre a Senhora nesta tribuna, mas ainda assim, considero importante, para concluir o meu raciocínio, que reavalie sua decisão de culpá-lo perpetuamente sem levar nada em conta o que eu disse sobre a fragilidade de seu julgamento e fingir que o que eu falei não feriu seu ego, nem te deixou incomodada. Duvido que a manchete do próximo jornal não vá te envaidecer por ter conseguido condenar o mais astuto dos bandidos, a sua própria consciência.

Obrigado.

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